No Cariri paraibano, na cidade de Amparo, existe uma Cruz da Menina ou Cruz da Moça, onde os beatos rezam para uma jovem que, segundo a oralidade, morreu de fome e sede.
(Esta reportagem faz parte da série ‘Santinhas, as milagreiras da Paraíba’, que conta histórias de quatro meninas consideradas santas populares)
Entre os séculos XIX e XX, aconteceram períodos de grandes secas no Nordeste. À época, com fazendeiros já estabelecidos por todos os cantos da região e ainda sem as devidas políticas públicas, os pobres precisavam circular de um lugar para outro em busca de alimento e água. Por vezes, eram expulsos pelas cercas e chamados de flagelados.

A mocinha sem nome era um desses flagelados e viajava com a família quando, após dias de caminhada, desfaleceu no local onde hoje fica a pequena capelinha. O agricultor Inácio Pereira de Vasconcelos, de 75 anos, conheceu a história ainda criança, contada pelos seus avós.
“Era um um pessoal que vinha viajando, vinha de viagem. Ninguém A gente não sabe nem de onde, né? Aí vinham viajando com a família. E quando chegou naquela lá onde hoje é a cruz, ela cansou. Essa criança cansou, não aguentou mais a viagem, eles não puderam mais levar ela”.
Seu Inácio conta que, segundo a história que ouviu dos avós, a família da menina foi em busca de amparo em alguma casa, mas a situação de fome e desidratação era tão crítica que os moradores da região não conseguiram salvar a criança. Tamanha era a fome, que a menina morreu mastigando um lenço que usava para amarrar seus cabelos.
“Quando o povo foi chegar lá, ela tava terminando de morrer, tava mastigando o lenço, né? Tava mastigando o lenço para chupar algum sumo”.
Devotos e milagres

José Farias, conhecido como Dé, mora próximo à capela dedicada à milagreira e cuida do local. Há uma pequena capelinha e ao lado uma maior onde são realizadas missas.
Ele diz que os mais velhos contavam que a família da menina ainda chegou a pedir comida em uma fazenda nas redondezas, mas o pedido foi negado. Quando a pessoa que negou a comida soube que a menina tinha morrido de fome, mandou fazer uma mortalha para o enterro.

“Ficou agoniada, aí disse: ‘já que ela morreu, eu vou comprar uma mortalha para enterrar ela’. Aí disse que quando quando enterraram a menina, quando foi no outro dia, a mortalha amanheceu no pé da porta da mulher”.
Ainda segundo José Farias, outra moradora da cidade sonhou com a criança pedindo para que fosse construída a capelinha. Assim, entre sonhos e pedidos atendidos, a menina de Amparo se tornou milagreira. O zelador afirma que recebe pessoas até de outros estados.
“Aqui vem muita gente, para carro novo aqui, pagando promessa. Um dia desses, chegou um camarada do Maranhão, ele pagou uma promessa aqui”.

Um dos devotos da menina de Amparo é Erivaldo Joaquim, que atribui à milagreira ter voltado a andar após um acidente de moto. Em agradecimento, um ano depois, ele levou a escultura de uma perna até a capela. Esse tipo de objeto é chamado de ex-voto e é oferecido a santos e milagreiros após uma graça alcançada.
“Os médicos disseram que eu ia ficar de cadeira de rodas. Aí fizeram essa promessa para mim, aí eu, graças a Deus, melhorei, voltei com três meses a conseguir me locomover, andar. Não normal, mas pelo menos um pouco um pouco de dificuldade, mas consegui, né? Aí, quando foi depois vim pagar a minha promessa aqui”.
Como se faz um santo?

Apesar dos milagreiros serem fruto do catolicismo popular, na maioria das vezes, não são reconhecidos pelo Vaticano, como destaca o historiador Lucas Medeiros.
“São pessoas que foram tratadas após a morte como objeto de devoção, como intermediadores com o sagrado. E isso não depende do reconhecimento oficial da igreja. Evidentemente, tem muitas pessoas que são tratadas como santos populares e ocupam também os espaços institucionais ligados ao Vaticano, né? Que é o caso do Frei Daminhão de Balzano, do Padre Cícero e de tantos outros”.
A conexão de fé é emocional, segundo Laércio Araújo, historiador e pesquisador sobre a morte e as emoções fúnebres na Paraíba entre 1850 e 1930.
“São as emoções que conectam os milagreiros com os devotos. Assim, as devoções populares passam a atuar entre os vivos como mediadoras no contato com o divino e com o transcendente”.
O historiador Lucas Medeiros destaca que os milagreiros têm em comum vidas marcadas por grandes sofrimentos, como fome e injustiças, o que desperta a identificação do povo.
“Foram mulheres que sofreram violência doméstica, foram crianças vítimas de exploração sexual, foram crianças vítimas de acidentes, foram homens injustiçados pelo regime político, então tanto a vida dessas pessoas foram difíceis na maioria dos casos quanto é o processo da morte também”.
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Fonte: Jornal da Paraíba