
Só faz dois meses que vimos no cinema Um Completo Desconhecido, a cinebiografia de Bob Dylan. Agora é a vez de Homem Com H, a cinebiografia de Ney Matogrosso.
Tem uma cena de Homem Com H em que Ney Matogrosso e Cazuza estão no palco de um teatro vazio. Eles conversam sobre o repertório do show de Cazuza.
É 1988. Ney Matogrosso foi convidado e aceitou dirigir o show. Cazuza fala de uma nova canção e diz que não tem certeza se ela deverá entrar no repertório.
Cazuza canta à capela, e ouve de Ney que, sim, a música não só deverá entrar no set list como é ela que vai encerrar o show. Aí, corta para um momento do show.
Cazuza, a banda e os versos de O Tempo Não Para: “Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/Transformam o país inteiro num puteiro/Pois assim se ganha mais dinheiro”,
Já perto do desfecho, esse pedaço em que Homem Com H se debruça sobre a aids, ali na segunda metade da década de 1980, me deixou triste, pra baixo.
Sou de uma geração que testemunhou o surgimento da aids como sentença de morte e que lamentou a perda de pessoas próximas e de famosos admiráveis.
A presença e a música de Cazuza me trazem essas lembranças, e O Tempo Não Para me remete ainda a uma triste realidade: seguimos no “puteiro” a que a letra se refere.
Dirigido por Esmir Filho e protagonizado por Jesuíta Barbosa, Homem Com H é uma bela cinebiografia de Ney Matogrosso, esse imenso artista brasileiro.
Ney Matogrosso esteve por perto da produção do filme, mas, felizmente, Homem Com H não é uma cinebiografia chapa branca do artista. O próprio Ney fez questão de que o filme só contasse verdades, das suas dores às suas alegrias, e não escondesse nada.
Homem Com H ostenta muitos méritos como cinebiografia. Sem medo de errar, penso que está entre as melhores das tantas cinebiografias que vimos nos últimos anos.
Em 1973, aos 14 anos, fui contemporâneo da explosão dos Secos e Molhados. Sigo Ney Matogrosso desde então, sua carreira, seus discos, seus shows.
Liberdade é o outro nome de Ney Matogrosso. Talvez a gente possa dizer isso. No final, o diretor Esmir Filho dedica o filme a Ney e menciona a sua ousadia de ser livre.
Homem Com H conta, portanto, a história verdadeira de um grande artista, um homem que não abriu mão da sua liberdade e nem de ser salutarmente transgressor.
Acredito que é uma unanimidade. O que mais impressiona em Homem Com H é a atuação de Jesuíta Barbosa. Esse jovem ator pernambucano de 34 anos é um Ney Matogrosso absolutamente perfeito na tela grande do cinema.
O olhar, a fala, os movimentos do corpo, a performance nos palcos – Jesuíta Barbosa tem tudo o que Ney Matogrosso merecia ter ao ser retratado numa cinebiografia.
É certeira a escolha das músicas que ouvimos em Homem Com H. Seja como síntese do repertório do artista, seja como instantâneos de meio século das nossas vidas.
Há uma surpresa nessa escolha. No resgate da personagem Luli (da dupla com Lucinha) ela traz para o filme o Réquiem Para Matraga, de Geraldo Vandré.
A música de Vandré está originalmente num grande filme brasileiro, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, que Roberto Santos realizou em 1965. E volta, já com feição de tributo, em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Encantado também não é uma escolha óbvia. Encantado é a versão que Caetano Veloso fez de Nature Boy, A canção, dos anos 1940, fez sucesso com Nat King Cole.
Muitos identificam Nature Boy como uma das primeiras canções de contúdo gay. Era admirada por Vinícius de Moraes, foi gravada em inglês por Caetano Veloso, e a versão de Ney Matogrosso está no álbum Seu Tipo, lançado em 1979.
Já O Mundo é um Moinho, de Cartola, mostra Ney Matogrosso no palco com um figurino que remete ao que ele usou no show Pescador de Pérolas, de 1987.
Ney é acompanhado por um violonista, que recria a figura de Raphael Rabello, integrante do grupo de músicos (Arthur Moreira Lima, Paulo Moura) de Pescador de Pérolas.
E comovente é a aparição do jovem Ney coralista, revelando a singularidade da sua voz, enquanto o coral faz Casinha Pequenina, joia do cancioneiro brasileiro.
Ney Matogrosso vai fazer 84 anos em agosto, desde 2019 está em turnê com Bloco na Rua, e Homem Com H é justíssimo tributo à sua presença na cena musical brasileira.
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Fonte: Jornal da Paraíba