Os brasileiros são majoritariamente favoráveis ao cancelamento de quem comete supostos erros no ambiente digital. Segundo pesquisa Datafolha, 67% concordam total ou parcialmente com a frase “As pessoas falam mais do que deveriam na internet e por isso merecem ser canceladas quando erram”. Cerca de 31% discordam da afirmação.
O índice de quem aprova sobe para 75% entre quem tem 60 anos ou mais; para 76% entre aqueles com ensino fundamental; e para 71% entre os que ganham até dois salários mínimos.
O Datafolha ouviu 2.010 pessoas de 16 anos ou mais em todo o país. Foram consideradas respostas apenas de entrevistados que disseram acessar a internet (1.908). A margem de erro é de dois pontos percentuais.
A conclusão não surpreende a youtuber e criadora de conteúdo Dora Figueiredo, 29, que já sofreu um duro cancelamento depois de publicar na internet uma brincadeira ao receber por engano uma entrega de padaria.
Acostumada a ganhar presentes de seus seguidores, Dora não estranhou quando um pacote chegou ao seu prédio numa manhã de novembro de 2020. Mas, depois de comer um dos pães de queijo, viu um bilhete com um pedido de desculpas endereçado a outra pessoa.
Nos stories do Instagram, ela elogiou a qualidade da comida e brincou sobre o perdão da destinatária. Na madrugada, um comentário problematizando o episódio mudou a recepção até então bem-humorada dos internautas.
Dora passou a ser acusada de falsidade ideológica e de exposição da intimidade alheia, além de ter seu caráter questionado. Ela conta que tentou contatar o motoboy que fez a entrega, o app, a padaria e a dona do pedido, sem sucesso.
A influenciadora perdeu 54 mil dos 814 mil seguidores na rede social. “Desde então, minha conta nunca cresceu direito. Tive transtorno de estresse pós-traumático, quis me matar e parei de trabalhar por um tempo. Até hoje dou ‘oi’ no Twitter e tem quem fale ‘olha aí a ladra de café da manhã’.”
Para a psicanalista Melissa Bottrel, o grande apoio dos brasileiros ao cancelamento passa pela baixa tolerância com quem tem opiniões divergentes. “Na internet, se alguém diz algo, isso fica gravado como se esse algo fosse a pessoa por inteiro.”
Na visão de Clara Becker, cofundadora da ONG Redes Cordiais, a situação também é consequência da polarização no país. “Uma porcentagem enorme acha que não vale a pena conversar com quem pensa diferente.”
A organização sem fins lucrativos existe desde 2018 e busca reduzir o ódio e a desinformação na internet por meio da educação midiática. No início, a ONG focou justamente os influenciadores digitais, com capacitações para que eles pudessem identificar fake news e responder aos haters sem escalar a discussão.
É preciso, no entanto, fazer uma diferenciação entre tolerância a uma opinião diferente e a discursos violentos. “Quando você se inscreve em qualquer rede social é proibido desinformação e ódio, mas as empresas não conseguem aplicar as próprias regras. Tudo o que é crime fora da internet, é crime dentro”, diz Becker.
Uma coisa é silenciar um sujeito porque ele é um criminoso e outra são os cancelamentos que ocorrem por disputa de poder e visibilidade, afirma Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital na USP (Universidade de São Paulo).
“Recebi memes com meu ex-namorado me espancando, recebi ameaças de estupro. Isso porque comi um café da manhã que veio para a minha casa”, diz a influenciadora Dora Figueiredo.
Em 2018, ela rompeu um relacionamento com o youtuber Otávio Albuquerque, o Tavião, e depois relatou nas redes ter vivido um relacionamento abusivo com ele. Seu ex, por sua vez, foi cancelado e perdeu contratos de trabalho.
Foi entendendo o tamanho dessas consequências que a dançarina e professora Alana de Almeida Cardoso, 30, reviu sua maneira de agir nas redes.
Em 2020, ela fez coro à onda de críticas sofridas pela influenciadora Gabriela Pugliesi, que organizou uma festa em casa no início da pandemia. “Eu fiquei indignada, postei memes com o nome dela. E aí pensei: ‘Será que a gente não contribuiu para uma penalização desbalanceada? Quantas pessoas conhecemos que estavam fazendo a mesma coisa? Será que essas pessoas merecem perder os empregos e morrer?”, diz.
Dora Figueiredo viu no episódio do pão de queijo o fim de sua participação no ciclo do ódio. “Também fiz isso de apontar o dedo. Todo mundo já passou do limite. Quem não foi cancelado não entende o horror. Temos coisas para discutir, mas não quer dizer que nós mesmos vamos apedrejar a pessoa.” A exceção para ela são os casos de violência contra a mulher.
Para Karhawi, da USP, o longo processo de erosão da confiança em instituições como família, política e governo impulsiona os cancelamentos. Segundo a pesquisadora, tem sido cada vez mais difícil pensar em soluções coletivas para questões estruturais da sociedade. O que sobra é a responsabilização individual e seletiva do cancelamento.
“O piadista é cancelado e a gente não resolve o problema, mas temos uma ilusão de solução coletiva”, afirma.
A psicanalista Melissa Bottrel enxerga dificuldades ainda maiores para as gerações mais novas. “Vejo mudança nos pacientes adolescentes depois da pandemia. Minha leitura é que essa ilusão de ser possível viver sem o outro de fato aconteceu nesse período. Agora essa pessoa vai para o mundo, onde tem que estar na sala de aula com alguém com uma opinião diferente e sem ter como desligar a câmera e o microfone.”
Clara Becker, da Redes Cordiais, defende o “silêncio estratégico” como reação a uma fala problemática nas redes sociais. Ela cita o chamado efeito Barbra Streisand, que acontece quando alguém, ao buscar censurar um conteúdo, acaba atraindo mais interesse para ele.
Em 2003, a atriz e cantora norte-americana tentou processar um fotógrafo por violação de privacidade por ter tirado uma foto de sua mansão como parte de uma iniciativa para denunciar a erosão costeira na Califórnia. A imagem, até então com quatro downloads, foi acessada por milhares de pessoas após a notícia sobre o processo.
Outro caminho seria repensar o modelo de negócio das redes sociais, que privilegiam conteúdos capazes de gerar indignação e engajamento, favorecendo os cancelamentos. “Fomos nos organizando nesse lugar egocentrado. Falamos muito de bolha, mas tem algo anterior”, diz Karhawi.
(Roberto Saraiva – Folhapress)
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Fonte: Paraiba Online