Da filha para o pai

Egberto Gismonti iluminou nossas vidas a partir de algum momento da década de 1970. Asseguro que permanece iluminando, passados já uns 50 anos.

Egberto Gismonti, seu piano, seu violão, sua voz, suas composições – o trabalho desse músico incrível que teve formação erudita e migrou para o popular.

Em sua música, popular ou erudita, o Brasil é um país de infinitas belezas. Mas não são muitas as que são tão ricas e belas quanto a música de Egberto Gismonti.

Na primeira metade da década de 1980, casado com a atriz Rejane Medeiros, Egberto foi pai de Alexandre e Bianca. Alexandre em 1981. Bianca em 1982.

Quis o destino que Alexandre fosse violonista, e Bianca, pianista. Violão e piano – justamente os instrumentos nos quais o pai exibe todo o seu virtuosismo.

Bianca e Cláudia Castelo Branco formaram o duo pianístico Gisbranco. E Bianca também tem seu trio, formado com o baterista Julio Falavigna e o baixista Antonio Porto.

Há pouco, Bianca lançou um álbum dedicado à música do pai, que está com 77 anos. Se chama Gismonti 70 e foi pensado para homenagear os 70 anos de Egberto.

Bianca Gismonti, Julio Falavigna e Antonio Porto gravaram o álbum na Hungria em 2018. Mas só no ano passado foi feita a parte gráfica, e Gismonti 70 foi lançado.

Numa entrevista recente, Bianca disse que seus álbuns preferidos são The Köln Concert, de Keith Jarrett, Urubu, de Tom Jobim, e Infância, um dos discos do seu pai.

Foi sobre os discos do pai que Bianca se debruçou para construir o repertório de Gismonti 70. As músicas são de autoria de Egberto, com exceção da valsa Ruth.

Ruth tem uma história interessante. Músico, o avô materno de Egberto Gismonti, Antônio Gismonti, compunha uma música para cada filho que nascesse.

Para a mãe de Egberto, Antônio fez a valsa Ruth. Em 1983, no álbum Cidade Coração, Egberto gravou a música ao piano com a melodia solfejada por sua mãe.

Bianca escolheu Ruth para fechar o repertório de Gismonti 70. Linda e melancólica, a valsa ressurge como um mergulho profundo de Bianca em suas raízes.

Entre os discos do pai, Infância é o preferido por Bianca, mas só há duas músicas desse disco no repertório de 11 faixas de Gismonti 70.

7 Anéis e A Fala da Paixão estão em Infância como regravações. 7 Anéis originalmente é de Feixe de Luz, de 1988, e A Fala da Paixão é de Cidade Coração, de 1983.

Para fazer Gismonti 70, Bianca Gismonti priorizou músicas das décadas de 1970 e 1980. O Sonho é dos anos 1960 e foi gravada por Elis Regina.

Bianca canta O Sonho, Auto Retrato e Saudações. Auto Retrato, que dá sequência a Don Quixote, é de Em Família (1981). Saudações é de Nó Caipira (1978).

Saudações, com Bianca e seu trio, é menos joãogilbertiana do que com o pai. Lôro tem voz, mas não tem letra. O original abre o álbum Em Família.

Talvez a gente possa dizer que Lôro é um dos temas mais requisitados pelo público de Egberto Gismonti. Como Palhaço, também regravada por Bianca.

Antes de estar no álbum Circense, de 1980, Palhaço se chamava Mais Clara, Mais Crua e, com letra de Geraldo Carneiro, era lindamente cantada por Olivia Byington.

Em Palhaço, Bianca reproduz ao piano o que a gente sempre ouviu acreditando ser uma improvisação. Não é. Trata-se, então, de uma “improvisação” escrita.

Água e Vinho, do início dos anos 1970, é um clássico do repertório de Egberto Gismonti. Forrobodó se mistura com Maracatú e evoca o baião de Luiz Gonzaga (Asa Branca) e o Prelúdio da quarta Bachiana, de Villa-Lobos.

Em Gismonti 70, o tempo todo Bianca se coloca muito habilmente entre a fidelidade aos originais escritos por seu pai e o desejo de imprimir a sua assinatura.

Não é tarefa fácil, até porque os olhos e ouvidos de Egberto estavam por perto com suas apreciações necessariamente críticas e sempre verdadeiras.

Mas Bianca foi aprovada com louvor e fez de Gismonti 70 um belíssimo álbum, desde já indispensável para nós que amamos a música imensa de Egberto Gismonti.