O MEC (Ministério da Educação) teve de cumprir, entre março e início de agosto, uma decisão judicial por dia em meio à corrida de empresas privadas de ensino por liminares que buscam a abertura de cursos de medicina.
A pasta registra 335 pedidos em tramitação por força de liminares obtidas por empresas. Esses processos representam uma demanda por 57.743 novas vagas. Se efetivado, o número mais que dobraria o tamanho da rede de ensino particular na área.
As empresas privadas de ensino superior têm forte interesse na abertura desses cursos. Esses 335 processos em trâmite significam um mercado estimado em R$ 67 bilhões, segundo relatos colhidos com consultores do setor.
Um curso de medicina com cem vagas vale cerca de R$ 200 milhões, levando-se em conta negociações recentes. Alavancam os valores no mercado as altas mensalidades (a média no país é de R$ 9.000) e excelentes taxas de permanência dos alunos.
O governo Lula (PT) informou o total desses processos à reportagem após uma semana de recusa. A Seres (Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior) do MEC é a responsável por esse trabalho.
A pasta comandada por Camilo Santana não informou, por outro lado, quantos desses processos estão em fase de análise inicial de documentos. Processos neste estágio devem ser interrompidos, segundo decisão recente ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
Ainda não há clareza por parte do governo sobre como interpretar a decisão e, portanto, quantos desses processos devem ser interrompidos para seguir a determinação do Supremo.
A posição do ministro do STF surge em meio a uma enxurrada de decisões judiciais para garantir às empresas que as propostas de novos cursos de medicina sigam em frente no MEC.
Até março, havia 223 processos. Esse número subiu para os 335 até 7 de agosto, data da decisão do STF. O que significa em quase um pedido por dia no período.
O setor privado tem hoje 223 cursos de medicina. São 41.723 vagas, segundo dados de 2021 (os mais recentes).
O MEC também recebeu liminares para ampliar vagas em graduações já existentes. Em março, eram 22 processos por força judicial pedindo a ampliação de 2.406 vagas. Esse quadro chegou, em agosto, a 34 pedidos, de 2.584 vagas.
Gilmar determinou que novos pedidos de cursos devem seguir as regras do Mais Médicos, de 2013, no modelo de chamamentos públicos.
Mesmo os processos via ação judicial que já passaram pela análise inicial só continuarão se atenderem a regras do programa, como a necessidade social do curso para a cidade.
O governo Lula publicou portaria, em abril, retomando o modelo de chamamentos. Ainda não lançou, entretanto, os editais. Isso deve ocorrer até setembro.
Os chamamentos públicos definem, por exemplo, critérios como de infraestrutura e localidades para, em tese, atender à falta de médicos em determinadas situações. Esse sistema foi interrompido em 2018, último ano do governo Michel Temer (MDB), quando houve uma interrupção de cinco anos para a abertura de novos cursos.
Durante esse período de trava é que se iniciou a explosão de decisões judiciais que obrigaram o MEC a dar continuidade a procedimentos de abertura de curso. Escritórios de advocacia passaram a se especializar em conseguir essas liminares.
As liminares não garantem abertura automática do curso, mas sim que o MEC toque o processo -a exemplo das regras que valem para qualquer graduação. Além dos processos em trâmite, a pasta já autorizou, até março, 11 cursos cuja tramitação se iniciou após medida judicial.
O governo afirma que vai cumprir a decisão judicial, mas que não teria certeza da interpretação correta.
“O MEC aguarda ser intimado da decisão e o parecer de força executória da AGU [Advocacia-Geral da União], com a devida interpretação quanto à melhor forma de cumprimento”, diz nota.
Questionada, a AGU não respondeu à reportagem.
A disputa levada ao STF trata sobre a manutenção do modelo de chamamento do Mais Médicos, argumentando pela sua constitucionalidade -o que foi acolhido por Gilmar. A briga na corte pôs em lados opostos entidades representativas de instituições privadas do ensino superior.
A Anup (Associação Nacional das Universidades Particulares) defende na corte a continuidade dos chamamentos. Já o Crub (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras), que a abertura não se restrinja aos chamamentos e que haja, também, a possibilidade pelo protocolo tradicional do MEC.
Há um debate sobre qual o tamanho da necessidade de ter mais médicos no Brasil, que envolve também discussões sobre a qualidade dos cursos, os esforços para uma melhor distribuição dos profissionais no país e a liberdade das empresas em expandir a oferta. Isso envolve governo, entidades médicas, especialistas, empresários e políticos.
Em janeiro de 2023, o Brasil contava com 562.229 médicos, o que corresponde à taxa nacional de 2,6 médicos por 1.000 habitantes. Os dados são do estudo Demografia Médica no Brasil, coordenado pela USP (Universidade de São Paulo).
Esse índice equipara o país a nações desenvolvidas. Mas tal taxa camufla desigualdades regionais: no Pará, por exemplo, a proporção é de 1,18 médico por 1.000 habitantes.
Segundo o professor Mario Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP e responsável pelo Demografia Médica no Brasil, é importante agora avaliar a qualidade das graduações e analisar a real necessidade de novos médicos.
Scheffer diz concordar com o modelo de chamamento público. Ressalta, entretanto, que ainda falta análise sobre o potencial da política em garantir melhor distribuição dos médicos formados.
“Hoje há uma pressão vinda da força do setor privado, com grandes empresas que viram nos cursos de medicina a galinha dos ovos de ouro, e também de parlamentares e prefeitos. Nossa expectativa é que o governo estipule critérios mais rigorosos”, diz ele, que ressalta a necessidade de haver conexão com a oferta de especialidades, como residência.
(PAULO SALDAÑA – FOLHAPRESS)
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Fonte: Paraíba Online