GUSTAVO ZEITEL
RECIFE, PE (FOLHAPRESS) – Não a aridez do sertão, mas o horizonte que se desperdiça, cimentado. Não o mar que arrebenta na praia, mas São Paulo, cidade armada pelo concreto.
“Olho passeio perdido/ A golpes de pedra e cal/ O horizonte ferido”, diz a letra de Carlos Fernando para a canção “Domingo de Pedra e Cal”, de 1977, incluída no primeiro disco de Geraldo Azevedo, artista homenageado no Carnaval de Recife em 2023.
Na noite desta sexta-feira, Azevedo, agora com 78 anos, subiu ao palco do Marco Zero, onde fez um show de mais de duas horas, cantando sucessos e recebendo convidados, como os amigos Elba Ramalho e Alceu Valença. Durante a apresentação, ele ainda lançou uma nova música, “Frevo Encarnado”, em parceria com Fausto Nilo.
“A canção tem tudo a ver com o momento em que estamos vivendo, essa volta à felicidade, e também pude retomar os trabalhos com Fausto como fazia antes, eu faço a música e ele põe a letra”, diz ele.
Se é possível ferir o horizonte, Recife é também obra da imaginação. Uma cidade inapreensível, como sugere o seu conjunto de ilhas. Resta sendo um enigma o Recife real, se tudo o que há na história é toda uma produção discursiva na literatura, na música e nas artes plásticas sobre a capital pernambucana.
Para a invenção do Recife, Azevedo é reconhecido como um dos compositores que revolucionaram o discurso sobre o Nordeste desde os anos 1970, quando toda uma geração de artistas da região apareceu na paisagem da moderna música popular brasileira.
A seca e a migração, temas a que Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro se dedicaram, ainda aparecem nos discos do compositor, mas com o tom intimista, próprio da bossa nova. Em sua poética, o autor de “Bicho de Sete Cabeças”, “Dona da Minha Cabeça” e “Caravana” preferiu rimar o amor, o sorriso e a flor.
“Essa coisa da pedra e da cal, por exemplo, tem a ver com a sensação que tive quando visitei São Paulo, quando já morava no Rio de Janeiro”, afirma. “Eu me deparei com muitas construções, senti uma dureza para os nordestinos, chegando naquela terra cheia de esperança para todos nós.”
Mas ele nunca abandonou a sua identidade. Por isso, as duas maiores festas populares do Nordeste, a festa junina e o Carnaval, são onipresentes em sua discografia. Delas, saem ritmos estruturantes para a sua música, como o frevo, o maracatu e o maxixe.
Em Petrolina, onde nasceu, ficava na porta dos clubes, esperando que algum conhecido o pusesse para dentro do baile de Carnaval.
Aos 15 anos, zanzava pelo salão até cair sentado, em meio a confetes e serpentinas. Gostava tanto da música, que, um ano depois, passou a integrar as bandas de frevo dos clubes. Atualmente, acha estranho a chegada de outros ritmos às festas populares.
“Teve uma época aí que a Prefeitura do Recife decidiu que o carnaval seria multicultural, então tinha um dia só de rock, eu não gosto muito.
Assim como festa junina com música sertaneja, pode ser um preconceito meu, mas eu acho que são festas tradicionais de cada lugar. E eu não vou me mudar, porque estão aparecendo outras coisas, vou continuar sendo Geraldo Azevedo.”
Se, em seus discos, o compositor não se limita aos temas do regionalismo, sua música é também híbrida, se aproximando da sigla MPB.
Nessa babel rítmica, que vai de Johann Sebastian Bach ao canto árabe, Azevedo se impõe como um virtuose do violão.
Em suas apresentações, o instrumento não serve apenas ao acompanhamento das canções, obtendo valor expressivo autônomo em longos solos. Ou, nas palavras do próprio violonista, o instrumento “é um contraponto de mim mesmo”. Nesse sentido, sua maneira de tocar violão se distancia da bossa nova ou da tropicália, atingindo um estilo todo particular.
Nascido no bairro Jatobá, às margens do rio São Francisco, Azevedo conviveu com a música desde cedo. Sua mãe, dona Nenzinha, promovia eventos na escola que funcionava em sua própria casa. Aos cinco anos, o menino, aguçado pela música, recebeu do pai o primeiro violão. Na juventude, Azevedo se mudou para o Recife, onde prestou vestibular para arquitetura. Durante certo tempo, chegou a trabalhar como desenhista e projetista.
A música, porém, se impôs em sua vida. Em 1967, chega do Rio de Janeiro, passando a acompanhar Geraldo Vandré, com quem compôs “Canção da Despedida”. Com os poetas Fausto Nilo, Capinan e Carlos Fernando, lançou seus principais discos -“Inclinações Musicais”, de 1981, “Tempo Tempero”, de 1984, e “De Outra Maneira”, lançado dois anos depois. Com Elba Ramalho e Alceu Valença, formou “O Grande Encontro”, excursionando Brasil afora há mais de 20 anos.
Em sua carreira, Azevedo não guarda mágoas de nada, mas se ressente de Gal Costa ter morrido sem gravar uma canção sua. Em 1997, ele lançou o disco “Bossa Tropical” e logo pensou que a voz de Gal poderia soar bem ao disco. Mas a cantora não aceitou o convite e ainda fez um álbum com o mesmo nome, em 2002, sem gravar a música homônima do compositor pernambucano.
“Achei uma coisa maluca, própria do universo da música, que não tem parâmetro das coisas. Lamentei muito que Gal foi embora e nunca cantou uma música minha, eu achava que ela ia cantar, assim como eu acho que Maria Bethânia ainda tem de cantar, se ainda der tempo.”
À primeira vista, os ritmos carnavalescos parecem vocacionados à felicidade. As canções de Azevedo, no entanto, se notabilizaram por rimar folia com melancolia desde o primeiro álbum, que leva o nome do artista. “Olê, lê, lê, Cadê meu carnaval?/ Carnaval está morrendo/ Cadê meu Carnaval?”, diz a canção “Cadê Meu Carnaval”.
De acordo com Azevedo, uma das causas para a tristeza seria a perseguição que sofreu na época da ditadura. Em 1969, os militares invadiram o apartamento onde morava com sua mulher, Vitória, e um casal de amigos. Todos foram presos, Azevedo sofreu as primeiras sessões de tortura. Em 1975, o cantor voltou a ser preso e torturado. Encapuzado e nu, era obrigado a tocar para os próprios torturadores.
Na época, o presidente Ernesto Geisel, em viagem à Alemanha, presenteou as autoridades com dois objetos representativos do Brasil. Um disco de Heitor Villa-Lobos e outro de Azevedo, que ele mandara para a prisão. Azevedo conta que demorou anos para lidar com o paradoxo imposto pelo regime militar. “Hoje entendo que uma das características de qualquer ditadura é não ter lógica nenhuma”, afirma.
Por isso, é tão difícil para ele lidar com os acenos de Elba Ramalho ao bolsonarismo. A posição política de Ramalho, ele conta, acaba criando rusgas entre os integrantes do Grande Encontro.
“Ficamos chateados com ela, desde a época que ela fez campanha para o Fernando Collor, eu não discuto mais, eu faço show com ela, mas a gente não fala em política, porque teve momentos em que discutimos, e ela teve atitudes mais grosseiras”, diz Azevedo. “Às vezes Alceu se exalta, eu não diria que isso afeta a amizade, mas afeta a convivência, nunca vou deixar de ter carinho pela Elba, mas não tenho mais a mesma disponibilidade que tive com ela, porque fica muito desagradável em determinadas situações.”
Azevedo, porém, se diz satisfeito com os novos rumos do país. Ele conta até ter se surpreendido com o ministro do STF, Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer, de quem se sente agradecido pela forma combativa como lidou com o recente golpismo. Avaliando sua carreira, ainda se incomoda com os rótulos impostos pelo mercado, sobretudo o de “música regional”.
“Tenho a maior raiva disso”, diz ele. “A minha música é muito eclética, em Pernambuco minha música é MPB, Djavan é do nordeste e não é regional, eu fico bem invocado com isso.”
Clique aqui para ler a notícia em seu site original
Fonte: Paraíba Online